
Após uma década de hiato na ficção, Chimamanda Ngozi Adichie nos presenteia com “A Contagem dos Sonhos” (Companhia das Letras, 2025), uma obra que marca seu retorno à literatura romanesca e expande seu universo temático. Conhecida por narrativas poderosas como “Meio Sol Amarelo” e “Americanah”, Adichie, neste novo livro, desvia do foco histórico ou das discussões sobre a identidade na diáspora para se aprofundar em questões mais íntimas e do dia a dia da mulher africana.
Um Quarto de Vozes Femininas e Suas Realidades
O romance se desdobra através das perspectivas de quatro mulheres: Chiamaka, Zikora, Omelogor e Kadiatou. As três primeiras, amigas de longa data e oriundas da classe média alta nigeriana, compartilham vivências semelhantes, marcadas por pressões familiares, desafios da maternidade e escolhas afetivas. Chiamaka, uma escritora nigeriana radicada nos Estados Unidos, assume o papel de narradora principal. Durante o confinamento da pandemia de COVID-19, ela se vê compelida a revisitar sua trajetória, suas decisões amorosas e os conflitos entre independência pessoal e expectativas culturais.
Zikora, advogada e mãe solo, enfrenta as dificuldades de criar um filho após ser abandonada pelo parceiro, enquanto lida com a ausência emocional da própria mãe. Já Omelogor, uma profissional bem-sucedida, precisa encarar os julgamentos de familiares e conhecidos por sua escolha de permanecer solteira e sem filhos.

A Voz da Invisibilidade: A Importância de Kadiatou
A quarta personagem, Kadiatou, uma imigrante guineense que trabalha como camareira em Nova York, rompe o padrão social das demais. Sua presença na narrativa é um ponto crucial, pois introduz uma camada mais explícita de desigualdade econômica e vulnerabilidade social. Sua trajetória, inspirada em um caso real, aborda temáticas sensíveis como a exploração de mulheres negras migrantes, a invisibilidade social e a violência sexual.
Através de Kadiatou, Adichie tece uma crítica contundente às estruturas globais de opressão que afetam o corpo e a dignidade de mulheres racializadas, especialmente aquelas excluídas dos espaços de poder e prestígio. Mesmo que sua inserção na narrativa possa parecer, por vezes, menos orgânica em comparação com as histórias das outras três amigas, a sua perspectiva é fundamental para ampliar o escopo crítico do livro e trazer à tona realidades frequentemente silenciadas.
Uma Linguagem Elegante em um Romance Fragmentado
“A Contagem dos Sonhos” se desenvolve de forma fragmentada, alternando vozes, memórias e episódios do presente. A escrita de Adichie mantém sua elegância e fluidez características, ao mesmo tempo em que abre espaço para momentos de introspecção e densidade emocional. A autora demonstra maestria ao construir personagens críveis, que enfrentam dilemas morais e afetivos sem cair na caricatura. A amizade entre as protagonistas nigerianas, apesar das tensões, funciona como um pilar emocional diante das pressões externas.
Embora o romance possa apresentar alguns desequilíbrios narrativos devido à amplitude de vivências femininas que busca abordar, ele representa um passo significativo na trajetória literária de Chimamanda. Ao adotar um registro mais íntimo e contemporâneo, ela amplia suas possibilidades expressivas. “A Contagem dos Sonhos” é um convite à escuta atenta, ao reconhecimento das diferenças e a uma profunda reflexão sobre o que significa ser mulher, africana e livre em um mundo que ainda luta contra tantas desigualdades.
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