
Por muito tempo, a obesidade foi vista apenas como uma questão de estilo de vida, uma consequência da falta de “força de vontade” ou de hábitos alimentares inadequados. Contudo, essa visão simplista ignora a complexidade do problema. A ciência, através de décadas de pesquisa, já consolidou um entendimento diferente e crucial: a obesidade é, de fato, uma doença crônica, multifatorial e progressiva.
Com mais de um bilhão de pessoas no mundo convivendo com a obesidade, é fundamental ir além do senso comum. Reconhecer a obesidade como uma doença é o primeiro passo para um tratamento eficaz e, acima de tudo, para uma abordagem mais empática e livre de julgamentos. Vamos mergulhar nos motivos científicos e nos impactos que justificam essa classificação.
O Fim de um Mito: Obesidade Não é Só Sobre ‘Força de Vontade’

A ideia de que a obesidade se resume a um balanço simples entre calorias consumidas e calorias gastas (“comer menos, se exercitar mais”) é um mito que a ciência desvendou. A realidade biológica é muito mais complexa. O corpo de uma pessoa com obesidade não funciona da mesma forma que o de uma pessoa com peso saudável. Diversos mecanismos biológicos, genéticos e hormonais trabalham contra a perda de peso, tornando a manutenção de um peso saudável um desafio imenso.
A vontade de emagrecer é apenas um dos muitos fatores. O cérebro de uma pessoa com obesidade, por exemplo, pode ter uma resposta alterada a sinais de saciedade e fome, levando a um impulso biológico por mais comida que não é facilmente controlado pela “força de vontade”. A luta, portanto, não é apenas psicológica, mas uma batalha biológica diária.
O Que a Ciência Diz: A Biologia por Trás da Doença
A classificação da obesidade como doença se baseia em uma série de evidências científicas que mostram como ela altera o funcionamento do corpo.
Inflamação Crônica
O tecido adiposo, mais conhecido como gordura, não é apenas um depósito de energia inerte. Na verdade, ele é um órgão endócrino ativo, que produz e libera substâncias chamadas citocinas. Em pessoas com obesidade, o acúmulo excessivo de gordura leva à liberação de citocinas pró-inflamatórias, causando um estado de inflamação crônica de baixo grau em todo o corpo. Essa inflamação sistêmica é a raiz de muitas outras doenças e explica por que a obesidade não é um problema localizado, mas uma condição que afeta o corpo como um todo.
Disregulação Hormonal
A obesidade causa um desequilíbrio profundo no sistema hormonal que controla o apetite e o metabolismo.
- Leptina: Conhecida como o “hormônio da saciedade”, a leptina é produzida pelas células de gordura para informar ao cérebro que o corpo já tem energia suficiente. Em pessoas com obesidade, o excesso de gordura leva à produção de muita leptina, mas o cérebro desenvolve uma resistência à leptina. É como se a mensagem não fosse mais ouvida. O resultado é a sensação de que o corpo não está saciado, levando a um ciclo vicioso de consumo de alimentos mesmo quando não há necessidade.
- Grelina: Apelidada de “hormônio da fome”, a grelina estimula o apetite. Na obesidade, o equilíbrio com a leptina é quebrado, e a grelina pode se tornar mais dominante, aumentando o desejo de comer.
- Insulina: A resistência à insulina é um dos principais mecanismos que ligam a obesidade ao diabetes tipo 2. O excesso de peso faz com que as células se tornem menos responsivas à insulina, hormônio responsável por levar a glicose para dentro das células. O corpo, então, precisa produzir cada vez mais insulina, sobrecarregando o pâncreas e, eventualmente, levando ao desenvolvimento da diabetes.
Fatores Genéticos e Ambientais
A genética também desempenha um papel significativo. Centenas de genes já foram identificados como capazes de influenciar a forma como o corpo regula o peso, o metabolismo e o apetite. Embora a genética não seja um destino, ela pode predispor uma pessoa a ter mais dificuldade para perder peso. Além disso, fatores ambientais (como acesso a alimentos ultraprocessados, sedentarismo e até o ambiente social) e psicológicos (como ansiedade e depressão) são componentes que se somam a essa complexa equação.
O Diagnóstico: Obesidade e Suas Múltiplas Comorbidades
Uma das razões mais contundentes para classificar a obesidade como doença é o fato de ela ser um gatilho para diversas outras condições de saúde graves, conhecidas como comorbidades. A obesidade não é apenas um risco; ela é a causa direta de:
- Diabetes tipo 2: O principal e mais conhecido risco, causado pela resistência à insulina.
- Doenças Cardiovasculares: O excesso de peso aumenta a pressão arterial, sobrecarrega o coração e contribui para o acúmulo de placas nas artérias, elevando o risco de hipertensão, infarto e derrame.
- Determinados Tipos de Câncer: A inflamação crônica e as alterações hormonais ligadas à obesidade estão associadas a um risco maior de câncer de mama, cólon, rim e fígado, entre outros.
- Problemas Ortopédicos: A sobrecarga nas articulações causa desgaste e inflamação, levando a condições como osteoartrite e dores crônicas.
- Apneia do Sono: O excesso de gordura no pescoço e na região do tórax pode obstruir as vias aéreas durante o sono, levando a uma respiração interrompida que afeta a qualidade do descanso e aumenta o risco de problemas cardiovasculares.
- Questões de Saúde Mental: A obesidade está frequentemente ligada à depressão, ansiedade e baixa autoestima, tanto por fatores biológicos quanto sociais.
O Reconhecimento Oficial: Por Que é Crucial Chamar de Doença?
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a American Medical Association (AMA) são algumas das principais autoridades de saúde que reconhecem oficialmente a obesidade como uma doença crônica. Essa classificação é de extrema importância por vários motivos:
- Muda a Percepção Social: Combate o estigma e o preconceito, reforçando que a obesidade não é uma falha de caráter, mas uma condição que exige tratamento.
- Direciona Recursos: Fomenta a pesquisa, o desenvolvimento de novos tratamentos e a alocação de recursos públicos para prevenção e combate.
- Melhora o Acesso a Tratamentos: Permite que os pacientes tenham acesso a cuidados médicos, que vão além de dietas e exercícios, incluindo medicamentos e cirurgias, que são tratamentos para uma doença, não para um estilo de vida.
O caminho para o tratamento é multidisciplinar, envolvendo não apenas nutricionistas e educadores físicos, mas também endocrinologistas, psicólogos e cirurgiões. A abordagem deve ser individualizada e focada na saúde integral do paciente.
Compreender a obesidade como uma doença é o primeiro passo para uma sociedade mais informada e solidária, e para que as pessoas que vivem com a condição possam receber o tratamento e o apoio que merecem.
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